1. Virtualização e digitalização

1. Virtualização e digitalização: as categorias e os conceitos operacionais que norteiam esta exposição

1.1. Necessidade de conceitos operacionais 

Embora sejam fenômenos distintos, não há oposição entre virtualizar e digitalizar.  Não se trata de termos que designem operações mutuamente exclusivas.

digitalização é uma exigência do mundo das tecnologias da informação e da comunicação. Máquinas, ao menos os atuais computadores, só podem tratar informações que estejam digitalizadas. A digitalização é condição necessária para usar os meios eletrônicos de armazenamento, processamento e transmissão de informação.  Como se vê na figura ao lado, o caminho do papel para o computador é a digitalização

digitalização, portanto, é um mero fenômeno de representação pelo qual se transporta algo de um meio físico não eletrônico – uma mídia como o papel – para outro, eletrônico, lançando mão da simbologia (codificação) e da forma de registro adequadas. A digitalização é condição de existência da informação num meio eletrônico.  Por isso o processo eletrônico não pode ser feito sem digitalização e por isso a lei 11.419/2006 obrigatoriamente passa pelo fenômeno.

virtualização, na acepção com que é tomada neste artigo, situa-se um passo adiante, como será amplamente explicado. Ela exprime o uso da informação digitalizada.

Como se vê, carece-se de conceito para essa categoria.
Sem resvalar para discussões estéreis, que infelizmente o termo virtual[7] enseja fecundamente, deve-se construir uma noção que, ao menos, funcione como um quase-conceito operacional suficiente para a exposição do pensamento.

1.2. Gazzaniga, o cérebro e a virtualidade

Em obra de 2011, um expoente da neurociência mundial, Michael Gazzaniga, traz uma síntese intrigante dos últimos avanços em torno do entendimento do sistema cerebral humano. Fortemente baseado em experimentos científicos das últimas décadas, Gazzaniga fornece elementos relevantes para a construção da noção de virtual necessária neste trabalho.

A acepção de virtual que se busca incorpora as noções mencionadas pelo neurocientista quando fala do “intérprete”, um módulo processual da rede cerebral, situado no hemisfério esquerdo do cérebro, que recebe as informações de inumeráveis módulos cerebrais especializados, dedicados e que atuam em paralelo e independentemente. O intérprete recebe essas informações e as consolida numa “história” que faz sentido para a consciência.

 Segundo o neurocientista, é exatamente esse módulo que faz o homem se sentir como uma unidade, como um  self.  Diz ele: “Isso é o que o nosso cérebro faz o tempo todo. Toma entradas (inputs) de outras áreas de nosso cérebro e do ambiente e as sintetiza numa história.”[8]

 Mais adiante, continua:

Assim, este processo interpretativo que nós temos no cérebro esquerdo  pega todas as entradas, junta-as numa história que faça sentido e a põe prá fora. Como vimos, entretanto, as saídas do hemisfério esquerdo são boas apenas em consonância com a qualidade das informações que recebe[9] 
Depois, no mesmo capítulo, encontram-se as seguintes informações adicionais muito relevantes:

O intérprete recebe os resultados da computação de uma multiplicidade de módulosEle não recebe a informação de que existe uma multiplicidade de módulos. Ele não recebe a informação de como os módulos trabalham.  [...] O intérprete é um módulo que explica eventos pelas informações que ele efetivamente recebe.  [...]  Assim, talvez, para o nosso processo de interpretação, a realidade é virtual. Depende dos indícios sensoriais que estão aqui e agora.[10] [sem grifo no original]
Nos trechos transcritos está a essência da conotação de virtual aplicada neste trabalho, conforme se explica melhor nos próximos itens. 

Um analista de sistemas enxerga imediatamente, na descrição de Gazzaniga,  a vetusta concepção sistêmica “entrada-processamento-saída” dos sistemas abertos (Bertalanffy), o que não é impreciso. Mas a análise deve aprofundar-se[11]

Chame-se a atenção para:

a) a ideia de “processo” amplamente distribuído e especializado, em rede;
b) a “inteligência” e a “consciência”[12] do “processo”, que sabe com o que está trabalhando;
c) a profunda dependência do “processo” em relação à informação que recebe;
d) o sentido teleológico do “processo”, ou seja, a produção para um destinatário, o que supõe a já mencionada ciência (conhecimento ou consciência) do que chega e também das expectativas em relação à saída; 
e) o desmonte do todo em elementos (inputs), ou a construção de um todo  (outputs) partindo de elementos (montagem a partir dos inputs), via um “processo” que incorpora um padrão, um montador; a seleção simplificadora para o ganho em complexidade[13]  e
f) uma visão de algo (resultado) que, naquela forma, não existe (ilusão? virtual?): “uma história que faça sentido para a consciência”. 

Tudo isso está consolidado na ideia de virtual aqui adotada. 

1.3. O significado de virtual em outras fontes

Buscando-se a definição de virtual em outras fontes, é possível encontrar significações, entre muitas outras aqui não mencionadas, que incorporam, de alguma maneira, as  noções relevantes realçadas nas transcrições de Gazzaniga:

1) “Realidade virtual, simulação de um ambiente real por meio de imagens...”, onde se encontra a ideia de simulação que, por sua vez, incorpora uma ação, o ato de simular, e um processo escondido, não aparente, que trabalha entradas e gera um resultado.[14]

2) “Que é feito ou simulado através de meios electrónicos”, onde  retornam  as ideias de fazer e simular e  acrescenta-se o meio eletrônico.[15]  

3) No Aurélio, encontra-se o seguinte: ”Inform. Que resulta de, ou constitui uma emulação, por programas de computador, de determinado objeto físico ou equipamento, de um dispositivo ou recurso, ou de certos efeitos ou comportamentos seus.”[16] Simulação transforma-se em emulação, um troca de palavras importante pois simulação tem uma carga pejorativa associada.

1.4. Tentativa de síntese

Pode-se dizer, então,  que  virtual  é o que parece ser e de fato é, mas de outra forma. A forma, tanto das entradas quanto das saídas, deve ser distinguida do conteúdo, que é organizado finalisticamente da maneira esperada pela consciência ( numa história que faça sentido para a consciência).

Essa criação da história é determinada pelos conteúdos (a organização é diretamente orientada pelos conteúdos, pelas entradas). Não há criação de entradas e sim o tratamento fiel delas para gerar um todo coerente para o destinatário, num processo que caracteriza a virtualização. O que o destinatário vê é virtual porque ele não vê as entradas na “forma” em que chegaram ao processo. O destinatário vê o resultado, as entradas já organizadas/tratadas pelo processo virtualizador. 

A criação da “história” pelo intérprete (processo ou algoritmo “virtualizador”) supõe amplo conhecimento dos conteúdos (a organização baseia-se nos significados do input para o destinatário) e também do resultado (uma história que faça sentido para o destinatário). O intérprete conhece os elementos com que trabalha, nas duas pontas: entradas e saídas. Essa é a ideia fundamental do processo de virtualização.  Se não houvesse esse duplo conhecimento, não se poderia chegar à organização da história coerente segundo as expectativas da consciência.

A ideia de virtual, portanto, traz essa noção de “parece mas não é”, porque, de fato, é de outro jeito, um jeito “inadequado” para o destinatário. Pensando em petição processual, por exemplo, vê-se-a como se deseja que ela seja, mas, de fato, ela é diferente na forma. Há uma mágica (processo) no caminho que permite ver o que não é daquela forma. O “processo mágico” tem domínio pleno do que efetivamente é, conteúdo este que é representado com fidelidade, sob outra forma. O segredo e o poder estão na “mágica” da transformação (no processo interpretativo), que sabe como é e como deve ser ou aparecer.

Pense-se, agora, no sistema do processo eletrônico que se conhece. Essas características são encontradas em seus módulos de processamento, em seus programas? Num nível elementaríssimo, muito elementar mesmo, sim.  Explique-se.
Quando um arquivo digital de uma imagem de um extrato bancário é mostrado para o juiz, num monitor, há um pouco dessa mágica. Mas apenas o absolutamente necessário. Para o computador e seu programa, a imagem é apenas um amontoado de bits (zeros e uns na memória). 

O programa utilizado limita-se a desfazer o caminho da digitalização, num processo que poderia ser chamado de desdigitalização ou de virtualização primária. Reconstitui-se a imagem do documento original num monitor. Retorna-se ao ponto em que o olho humano possa entrar em ação. E só.

virtualização envolve o humano, numa ponta do processo, como o destinatário. Enquanto a digitalização é feita para a máquina, a virtualização é feita para o homem. Há uma inversão de sentido do processo. A virtualização é menos física e mais perceptiva, um fenômeno de consciência que só se concretiza, utilitária e finalmente, no humano ou com o humano. Sem o elemento humano como destinatário, não faz sentido falar de virtualidade. Mas pode haver digitalização. Para os conceitos operacionais aqui terçados, os níveis de inteligência envolvidos na digitalização costumam ser primários, quando comparados com os níveis de inteligência que podem estar envolvidos em processos de virtualização.

Isso porque a virtualização pode transcender a simples operação de saída do nível de digitalização – operação de desdigitalização -  avançando para o que ocorre além do olho, já no âmbito cerebral. Naquele nível elementar de que se falou acima (virtualização primária), ela é feita para dar ao olho o acesso a informações que estejam em formato incompatível com suas possibilidades sensoriais. A virtualização, entretanto, pode ir muito além, absorvendo processos de que o cérebro se ocupa após receber a informação visual. Advogados, juízes, assistentes estão sobrecarregados com operações que o sistema processual pode executar com mais rapidez, segurança e confiabilidade. Pode-se aliviar, tirar a sobrecarga, do intérprete.

Na memória do computador, ou no monitor, o número 38, presente numa imagem escaneada ou mesmo num documento eletrônico,  não diz nada para o programa do computador. Continua sendo um amontoado de bits que, no máximo, orienta a transformação “memória ->monitor” ou permite alguma edição manualmente comandada.  O processo cerebral associado, entretanto, após a leitura, pode “interpretar” como sendo um revólver (“ele matou com um 38”).   A imagem de  “3 + 8”, para o computador, é apenas um amontoado maior de bits. Para o intérprete cerebral, entretanto, pode ser levado à consciência como 11. Principalmente se após os dois algarismos aparecer o sinal de =.

O processo, no âmbito cerebral, é claramente constrangido pelas entradas e pelo contexto. Ou seja, as entradas, naquele contexto, deflagram um processo específico.

Vê-se que, falar de virtualização envolve falar de “processo”, de inteligência, de conhecimento, de consciência. O sistema eletrônico de processamento de ação judicial – SEPAJ - precisa dar esse passo adiante e absorver, após o processo de virtualização primária, outros processos de virtualização que, na atualidade, ocorrem apenas nos cérebros de advogados, procuradores,  assistentes e juízes.  É preciso ir além do “ 3 + 8” e mostrar, logo, o 11.  A viabilização desse “passo adiante” supõe algumas coisas. A primeira delas é a própria digitalização da informação em formato compatível para o uso posterior por processos automáticos (datificação pertinente)[17].  Algumas outras são abordadas adiante, neste artigo. E isso pode ser feito gradualmente, desde que se ponha o desenvolvimento e a evolução dos SEPAJs sob o norte da virtualização.