4. Processo eletrônico atual e limitações

4. O sistema processual eletrônico atual, suas peças digitais e suas limitações. Revisando e exemplificando.

No título do artigo, fala-se em virtualizar o virtual. Na verdade, poder-se-ia, no máximo, dizer virtualizar o digital. A provocação do título serve para realçar a diferença entre as duas ideias e marcar bem a distinção entre elas, às vezes utilizadas como sinônimas. 

4.1. Papel, bits, bytes e informação

Se dígito é tomado com o sentido de bit (a menor quantidade de informação que um computador trata), então digitalizar tem o sentido de representar em bits.Embora o computador trabalhe com bits (é comum dizer-se que tudo é zeros e uns na memória do computador), pode-se dizer que é apenas num patamar mais elevado, de agrupamento de bits (os bytes), que os conteúdos começam a fazer algum sentido para os computadores e para os humanos. A letra A, por exemplo, é um conjunto organizado de bits e, em geral, ocupa um byte (oito bits) na memória. Entre o registro na memória e o que se vê na tela, entra um programa de computador que transforma os bits do byte num conjunto maior de bits que, representados no monitor, representam uma figura que os humanos conseguem “ler” (recuperar visualmente).   Essa “mágica” transformadora – que sabe, pela quantidade e disposição dos bits nos bytes (inputs), como transformá-los em um outro conjunto de bits que, exposto numa tela, torna-o um símbolo legível por humanos (forma conveniente para o destinatário) - é a essência a realçar do processo de virtualização. Vê-se o que, de fato, é de outra forma.
É preciso levar essa mágica para um outro patamar no âmbito do processo eletrônico[24]. Ampliar essa mágica é implantar inteligência no sistema processual para que o sistema não apenas transforme bits em bytes, mas aprenda a lidar com conjuntos de bytes e possa, manipulando-os, auxiliar os humanos de uma forma mais efetiva.
digitalização, já se viu, é um processo de representação feito num sentido. Por exemplo: do papel (imagem visual) para o disco magnético (registro físico-tecnológico). A virtualização também é um processo de representação, pode-se dizer, mas feito no sentido oposto. A digitalização vai no sentido dos bits, a virtualização, como aqui proposta, é um fenômeno que parte dos bits e, de maneira inteligente, chega a modelos de representação e a processos de tratamento da informação acessíveis e confortáveis para os humanos. O destinatário é o homem, a máquina não trivial do processo (Foerster).

4.2. As peças monolíticas dos autos em papel continuam nos autos eletrônicos. E toda a lógica do sistema processual orienta-se por elas.

Nos sistemas processuais eletrônicos brasileiros atuais, apesar de ter sido mudada a mídia – do papel para o disco rígido –, continua-se a trabalhar com peças (falando-se só delas, mas isso vale para o todo!) que não são virtuais. São peças digitais, mas não virtuais[25].  O suporte físico agora não é mais o papel. É um disco magnético.  O registro da peça processual, que no papel se fazia com letras e possibilitava a leitura direta pelos sentidos (olho humano), passou a ser feito com bits, cada um representando um minúsculo ponto de uma imagem, espacialmente localizado num plano. Dali, do disco rígido, somente um programa de computador pode remontar as “letras” para que o humano analise a informação registrada. Ou seja, toda recuperação de informação é necessariamente mediada[26]. Ocorre, no caso, uma desdigitalização.
O legislador distinguiu documento eletrônico de documento digitalizado (artigo 11 da lei 11.419/2006, por exemplo). No documento eletrônico, que também é digital, eleva-se um pouco o nível de conhecimento a respeito do que está digitalizado. Há programas que permitem, em arquivos nesse formato, mexer nas letras, mudar a forma, enfim, “editar”. Chega-se ao nível dos bytes ou dos caracteres.
Entretanto, as peças monolíticas, duras, permanentes, inteiras, continuam nos autos.  Mesmo num arquivo em formato “.pdf”, apesar da imposição de um formato de codificação,  trabalha-se com a “imagem do documento”, não com seus conteúdos. Aliás, o formato foi adotado principalmente para evitar a alteração dos conteúdos.
 -Quero ver a petição inicial, o despacho tal, a sentença, o acórdão!
Sem problemas. Vai-se ao sistema, o arquivo digital é desdigitalizado e ganha forma, num monitor, para leitura pelo humano curioso. Ou é baixado para ulterior impressão.
Tudo se transforma, entretanto, se o curioso pretender ir um pouquinho além da virtualização primária:
-Quero ver a fundamentação do terceiro pedido! Ou a cláusula 2ª da CCT de 2010!
 Claro, poder-se-á ver. Mas para isso deverá ser buscada a petição ou o texto da CCT. E, a partir daí, olho (até quando os olhos vão agüentar?) e setinhas levarão o interessado a extrair a informação da imagem exibida. Às vezes, depois de um bom incômodo. Os milhões despendidos em sistemas processuais, até agora, não nos levaram a esse patamar elementar de atendimento às curiosidades dos interessados: advogados, juízes, assistentes.
Isso porque as peças são produzidas e juntadas como algo insosso, sólido e indecifrável pelo programa processual. No máximo, os programas conseguem recompor os pontos ou bits, num monitor ou numa impressora, para refazer a imagem das letras no papel. Sabe-se, também, que, num arquivo ‘escaneado”, se o registro da imagem das letras é confiável, é possível recuperar as letras e gerar um arquivo editável (documento eletrônico). É o processo de reconhecimento ótico de caracteres (OCR), também conhecido como digitalização do conteúdo literal da imagem.
Em relação a todas essas imagens presentes nos autos processuais eletrônicos atuais, o máximo que o sistema processual “sabe” é que existe um arquivo digital, que deve ser aberto e exibido por determinado software capaz de ler cada ponto da imagem e exibir num monitor. Qualquer conteúdo informacional contido naquela imagem continua a ser extraído pelo usuário, visualmente, não mais a partir do papel (embora sejam muitos os que ainda imprimam antes de usar), mas a partir da imagem exposta num monitor.  As coisas não mudam muito quando se fala de um documento eletrônico, produzido por um editor de texto do mercado.
Vai-se do bit ao olho do advogado, do assistente ou do juiz.

4.3. O juiz e o gerente: a fraqueza e o poder.

Tome-se o exemplo das imagens “escaneadas” e juntadas aos autos. Podem ser as imagens de envelopes de pagamento de um processo trabalhista.  Quando o advogado baixa as imagens (ou o juiz as examina no monitor), não está lidando com arquivos virtuais. Trata-se, na verdade, de arquivos digitais
A situação é completamente diferente na empresa onde está o sistema que gerou aqueles envelopes. O gerente pode pedir ao sistema, de uma forma muito simples (comando SQL, por exemplo), que liste os envelopes do empregado tal, dos meses em que houve o pagamento de horas extraordinárias além de 40. E que apresente um total. Depois ele pode pedir que mostre o envelope do mês em que houve maior excesso de horas. E o sistema exibe o envelope no monitor. Ele monta, na hora, este envelope. No linguajar de Gazzaniga, os elementos da entrada (dados que estão nos discos do sistema de folha de pagamento) são montados segundo o formato que o destinatário espera.
O que faz o juiz quando quer saber isso num processo?
Das três, uma: chama o assistente, envia os autos para o contador ou, então, usa olhos, caneta, calculadora e produz a informação! Com bravura...
Volte-se ao advogado que foi até o sistema processual, zanzou prá lá e prá cá, escolheu uma imagem de um envelope de pagamento e baixou.
Esqueça-se o arquivo baixado e pense-se nas páginas do sistema processual pelas quais o advogado transitou. Essas sim são virtuais. Elas não existem. Como o envelope de pagamento do gerente, elas são montadas para o usuário, na hora em que são buscadas. Provavelmente, um minuto depois, o navegador as montará diferentes, para o mesmo usuário ou para os outros milhões que, naquele momento, estão acessando o site.
Um navegador é exatamente isso. Um programa que “monta uma imagem de página” toda vez que é demandada. E a exibe no monitor. Se houver o acesso de um milhão de pessoas, simultaneamente, um milhão de vezes a página será “montada”, virtualmente (aquele processo inteligente que atua a partir das entradas, conhecendo-as, e preocupado com o que espera o destinatário momentâneo), para exibição nas telas dos usuários. A página é aquele ser existente por meio das tecnologias da informação e da comunicação. E que “é montada” (ocorre a mágica), não apenas exibida.  

4.4. Virtualizar é introduzir inteligência no sistema processual

 O que está por trás dessa transitoriedade de existência das páginas, dessa montagem para exibição, pode parecer trivial, mas não é. Ela supõe muito mais que o mero exibir de “pontos numa tela de monitor”, como já se viu nos tópicos anteriores.  Ela exige um nível superior, mais refinado, de conhecimento do sistema a respeito daquilo que ele está manipulando.  A imagem exibida não é apenas a projeção de um conjunto simples, ponto a ponto, univocamente, de bits existentes num disco rígido, num monitor (caso típico da exibição de uma imagem digital). Numa construção virtual, o sistema, segundo sua estrutura operacional (seus algoritmos), “monta a história”, considerando os conteúdos a serem exibidos, os mecanismos de tratamento, a formatação a que devem ser submetidos etc. Para os fins deste trabalho, lembre-se, algo que distingue digital de virtual é a introdução de algum nível adicional de conhecimento sistêmico (consciência) a respeito dos conteúdos representados pelos bits e bytes de um arquivo digital, antes da exibição ao usuário. Alguns chamariam esse conhecimento de meta-informação.
 O sistema passa a ser ciente e potencial manipulador/processador de “informações/dados” contidos nos documentos que armazena. E pode ser programado para tratar tais informações da maneira que se entender necessário. 

Se a ideia é levada às peças processuais, percebe-se logo que a questão do tamanho se esboroa.  Não haverá peças processuais. Elas serão montadas no momento da construção, ou da consulta, com o tamanho que precisarem ter, de maneira inteligente e com o nível desejado (e programado) de “ciência” a respeito dos conteúdos.

As peças poderão ter “visões” adequadas e convenientes para quem as está acessando: juiz, advogado, partes (foco no destinatário, o que não significa que um não possa ver a visão do outro!).  Ver-se-á o que se desejar ver, no momento em que precisar ver, e, inclusive e se for o caso, nos limites do que for permitido ver (questão da publicidade!).

Por isso, é preciso virtualizar o digital. É necessário que o novo CPC preveja, expressamente, a possibilidade da virtualização das peças processuais e do processo como um todo (autos virtuais). Estar-se-á dando, assim, um passo fundamental para se avançar com o processo virtual para patamares em que a tecnologia será utilizada de maneira nobre e eficaz para auxiliar os operadores jurídicos: advogados, procuradores, assistentes e, claro,  notadamente o juiz, no momento de decidir.