3. A lei 11.419, digitalização e virtualização

3. A lei 11.419, a ênfase para a digitalização e o esmaecimento da virtualização

3.1. Muita digitalização. Zero de virtualização.

A lei 11.419/2006 – a lei do processo eletrônico – não contém o termo virtual.
Ela apresenta, entretanto: 9 ocorrências da palavra digital/ais; 5  da palavra digitalização; 3 da palavra digitalmente, 5 da palavra digitalizados/as e 1 da palavra digitalizando,  num total de 22 ocorrências de palavra com raiz “digital”.
As palavras apresentam-se espalhadas ao longo do texto, em diferentes dispositivos – artigos, parágrafos etc. Encontram-se na lei: “arquivos digitais”, “assinatura digital”, “certificado digital”, “assinado digitalmente”, “digitalizando-se o documento físico”, “equipamentos de digitalização”, “documentos digitalizados e juntados”, “processo de digitalização”, “documentos cuja digitalização seja tecnicamente inviável”, “digitalização de autos”, “mídia não digital”, “digitalmente”, “armazenados de modo integralmente digital em arquivo eletrônico” e “cópia digital de título executivo”.
Numa lei de 20 artigos, isso dá uma média superior a um aparecimento por artigo.  Ou seja, o Brasil dispõe de um processo eletrônico fundado na digitalização, como não poderia deixar de ser.  O que se está propondo é um avanço para um processo eletrônico que incorpore, de maneira robusta, a virtualização, porque esta é condição necessária, indispensável, para acelerar o processo decisório, exatamente o calcanhar-de-aquiles do processo eletrônico atual.
A ênfase legal para o fenômeno da digitalização escamoteou a importância de se ir além e de se prestigiar a introdução, no sistema processual, das possibilidades que somente a virtualização pode trazer.  Na verdade, conscientemente ou inconscientemente, fez-se um movimento de fuga da complexidade, o que compromete inteiramente o futuro do processo eletrônico. Como diz Niklas Luhmann,
Desde el punto de vista formal el concepto de complejidad se define, entonces, mediante los términos de elemento y relación. El problema de la complejidad queda, así, caracterizado como aumento cuantitativo de los elementos: al aumentar el número de elementos que deben permanecer unidos en el sistema, aumenta en proporción geométrica el número de las posibles relaciones, y esto conduce, entonces, a que el sistema se vea obligado a seleccionar la manera en que debe relacionar dichos elementos.”[23] 
Parece fato inquestionável, hoje, que a mera digitalização das peças e demais elementos dos autos processuais – como tem ocorrido no Brasil -  não é condição suficiente para se alcançar um processo eletrônico com as características necessárias para colocar a tecnologia de forma otimizada a serviço de uma melhor prestação jurisdicional, qualitativa e quantitativamente falando.  É condição necessária, mas não suficiente. Muita esperança tem sido posta no processo eletrônico marcado apenas pela digitalização. Entretanto, tais expectativas somente serão atendidas pelo próximo processo, o processo virtual.

3.2. O parágrafo único desafiador

Há um dispositivo na lei 11.419/2006, na verdade um comando expresso, que tem sido esquecido pela maioria dos SEPAJs atuais. A impossibilidade de dar cumprimento a esse comando legal é, talvez, a expressão mais contundente da impotência do processo eletrônico digital existente no Brasil hoje.  Nessa norma, o legislador determinou que se fizesse o que é impossível fazer num processo desenhado e desenvolvido segundo os ditames da mesma lei. Mais parece um titubeio legislativo. Ou um devaneio.
Esse comando da lei 11.419/2006 só será atendido se o novo CPC der o passo avante. No âmbito de um novo processo, que permitirá o desenho de um sistema processual com as características expostas neste artigo, o legislador de 2006 será finalmente atendido.
Não se trata apenas de atender àquela determinação. O que o caso evidencia é que, num processo com nova concepção, abrir-se-ão caminhos para que o sistema processual efetivamente incorpore os meios de tirar a sobrecarga atual de trabalho dos operadores.
Diz o parágrafo único do artigo 14 da lei 11.419/2006: “Os sistemas devem buscar identificar os casos de ocorrência de prevenção, litispendência e coisa julgada.”
Qual sistema eletrônico de processamento de ação judicial, hoje, está apto a “buscar identificar” a ocorrência dos fenômenos jurídicos indicados?  O atendimento a esse comando legal supõe um imenso conhecimento do sistema a respeito de vários elementos dos autos processuais. E, pior, de distintos autos processuais. A disciplina legal em torno desses institutos demonstra a riqueza de informação necessária para se articular um algoritmo que possa, ao menos, sugerir a possibilidade de ocorrência de uma das situações processuais aventadas.  “Ah, pode-se ao menos informar que os dois processos têm as mesmas partes.” Será? Talvez até nesse nível elementar (partes) pode ser duvidoso, para alguns sistemas, expedir uma afirmação.
E não se diga que não se avançou porque há a necessidade de todos os processos estarem sob a forma eletrônica. Da maneira como estão sendo concebidos os SEPAJs, jamais será possível atender a esse comando legislativo. Pense-se, por exemplo, apenas nos detalhes para caracterização da coisa julgada.